Resenha Crítica – Trilogia Kafka: A Anatomia do Cárcere e a Estetização da Impotência

Resenha Crítica — Trilogia Kafka: A Anatomia do Cárcere e a Estetização da Impotência

Por Márcia Boaro

Publicado em Os Que Lutam

O espetáculo Trilogia Kafka, em cartaz no Teatro Núcleo Experimental, é fruto do trabalho conjunto de Helio Cicero, André Capuano e Pedro Conrado, sob direção e adaptação de Cesar Ribeiro. Mais do que uma montagem que transita entre literatura e cena, trata-se de um projeto dramatúrgico que articula atuação, espaço e pensamento em uma operação estética de alta densidade. Ao escolher quatro textos de Franz Kafka — Diante da Lei, O Artista da Fome, Relatório para uma Academia e Carta ao Pai —, o espetáculo não realiza uma adaptação no sentido tradicional, mas constrói um dispositivo de análise, exposição e desnudamento dos sistemas de opressão que atravessam a história e persistem no presente.

Sobre Franz Kafka

Franz Kafka (1883-1924) foi um escritor tcheco de língua alemã, considerado um dos autores mais influentes do século XX. Sua obra explora temas como alienação, ansiedade, culpa e a burocracia absurda. Seus textos frequentemente apresentam protagonistas enfrentando sistemas opressivos e impenetráveis.

Cena da peça "Trilogia Kafka" no Teatro Núcleo Experimental

O Gesto Político e a Materialidade da Cena

O gesto da encenação não é ilustrativo, tampouco narrativo. É, antes de tudo, político. A cena se organiza como um campo de forças onde se tornam visíveis os mecanismos da violência estrutural — sejam eles institucionais, econômicos, culturais ou subjetivos. A opção estética, ancorada nas referências ao teatro de Tadeusz Kantor, estrutura uma materialidade cênica que recusa o naturalismo. O palco se organiza como espaço de memória, ruína e exposição. As grades, as celas, as marcas no chão, os objetos e os corpos não são meros elementos de composição visual. Eles operam como signos materiais de uma cena que se organiza não para representar o mundo, mas para expor suas engrenagens — e seus horrores.

O uso da profundidade do palco se converte em uma construção dramatúrgica de altíssima precisão. O avanço no espaço físico não corresponde a um avanço em direção à liberdade ou à resolução. Pelo contrário. Assim como nas narrativas de Kafka, quanto mais os corpos avançam, mais revelam a extensão e a complexidade da prisão. O palco se torna labirinto, e a espacialização da opressão ganha concretude. O espaço não é cenário. É dispositivo. Grades, celas, cercas, sombras, corredores, limites. Não são metáforas. São a própria encarnação da estrutura de controle, da arquitetura da opressão, do espaço onde se dá a captura do corpo e da subjetividade.

O trabalho dos atores — Helio Cicero, André Capuano e Pedro Conrado — é a espinha dorsal do espetáculo. A precisão técnica, evidente em cada gesto, em cada inflexão de voz, não se converte em virtuosismo. O domínio do ofício não está a serviço da exibição, mas sim de uma escolha ética e política: usar a cena como espaço de questionamento, de elaboração coletiva das contradições que nos atravessam enquanto sujeitos históricos, enquanto corpos inseridos em um presente que atualiza permanentemente os dispositivos da opressão. Esses corpos em cena oscilam o tempo todo entre a presença e a ausência, entre o humano e sua fantasmagoria. A lógica kantoriana do manequim, do objeto que se torna extensão da memória ou da própria condição de ruína, atravessa a composição cênica. A atuação opera no limite entre o documento e a ficcionalização, entre a biografia coletiva e a fabulação crítica. Os corpos, atravessados pela referência estética de Tadeusz Kantor, não são sujeitos históricos. São bio-objetos. Fragmentos de humanidade, resíduos de subjetividade, espectros que existem numa zona intermediária entre o humano e sua própria fantasmagoria. O corpo do ator não representa. Ele testemunha sua própria captura.


A Dramaturgia da Opressão e o Padrão Implacável

A dramaturgia da encenação estabelece uma progressão que não busca síntese nem resolução. A abertura com Diante da Lei apresenta de forma contundente a lógica da exclusão jurídica. O homem que permanece indefinidamente diante da porta da Lei, sem jamais ser autorizado a atravessá-la, não é exceção. É a regra de uma sociedade fundada na negação do acesso pleno à cidadania, à justiça e aos direitos.

O Artista da Fome desloca a reflexão para a espetacularização do sofrimento. O corpo que performa sua própria destruição, que transforma a fome em espetáculo, perde valor na medida em que as dinâmicas do consumo mudam. A fome, antes valorizada como demonstração de resistência ou disciplina, se torna invisível — e, portanto, descartável.

Relatório para uma Academia tensiona a questão da assimilação. O macaco que aprende a ser humano, não por desejo, mas por necessidade, revela a crueldade das dinâmicas coloniais, culturais e sociais em que a sobrevivência exige a abdicação de si, a adesão aos códigos do opressor, a mutilação da própria história em troca de uma saída possível — que nunca é liberdade, apenas fuga da jaula.

Carta ao Pai fecha o percurso dramatúrgico deslocando a reflexão para o núcleo familiar. O pai não é um indivíduo isolado, mas a personificação da autoridade, da lei patriarcal, da pedagogia da culpa e do controle. É nesse espaço doméstico que os dispositivos da opressão se infiltram de forma mais perversa, moldando subjetividades, naturalizando a obediência, instaurando o regime da impotência e do medo desde a infância.

O padrão é implacável:

Opressão + Tentativa de Resistência Individual → Reforço da Opressão.

Não há síntese. Não há saída. O que há é uma implosão permanente da própria antítese. A busca por liberdade termina revelando que a prisão é fractal: cada porta que se tenta abrir revela apenas outra cela.

A trilha sonora, o desenho de luz e a cenografia não operam como elementos de ambientação, mas como dispositivos dramatúrgicos de primeira ordem. Cada som, cada sombra, cada marca no espaço reforça o desenho de uma cena que não busca reproduzir a realidade, mas desvelar suas estruturas, seus abismos e seus mecanismos de violência. O tempo, assim como no texto de Kafka, é um tempo sem horizonte. Não há passado como memória transformadora, nem futuro como promessa. Só há presente. Um presente que se repete, que se atualiza, que se perpetua como prisão permanente.


O Paradoxo: O Brilho que Ofusca e a Estetização da Impotência

A montagem é brilhante. Isso precisa ser dito com todas as letras. Não há nenhum deslize na construção da cena, da atuação, da ocupação do espaço, do desenho de luz, do uso do som, da partitura física. Mas aqui se instala o paradoxo mais incômodo — e mais necessário de ser debatido:

Quanto mais perfeita é a execução estética da encenação, mais eficiente ela se torna na fabricação de uma experiência de impotência.

A cena não busca transformar a lógica da opressão em matéria de luta. Ela busca expô-la. E faz isso com uma beleza brutal. Mas, ao fazê-lo, transforma a anatomia do cárcere em espetáculo. Um espetáculo rigoroso, sofisticado, honesto. Mas, ainda assim, espetáculo. O público não sai da sala com um projeto, com uma chave, com uma hipótese de saída. Sai com a certeza — renovada, dolorida e inescapável — de que a prisão é irremediável.


A Armadilha Filosófica do Teatro da Denúncia

Esse não é um problema exclusivo deste espetáculo. É um sintoma de um paradigma do teatro contemporâneo que se organiza em torno da denúncia — e que, muitas vezes, transforma a exposição das contradições em ponto de chegada, e não de partida. Há uma diferença estrutural entre dois modos de operar a contradição:

Paradigma Operação da Contradição Efeito no Público
Teatro da Denúncia (Kafka + Kantor como matriz estética) A contradição é exposta, desdobrada, esgarçada — mas nunca superada. O público é testemunha da catástrofe. Sai mais lúcido, mas também mais impotente.
Teatro Dialético Histórico (Brecht, Weiss, teatro político transformador) A contradição é motor de síntese. É elaborada para ser superada. O público é coautor da cena. Sai em conflito com ela — e com o mundo.

O que está em jogo não é uma questão de qualidade estética. Nem de talento, nem de domínio técnico. O que está em jogo é uma escolha filosófica:

Expomos o cárcere para que o público o admire? Ou para que ele construa — junto — a sua destruição?

A Beleza da Catacumba

Trilogia Kafka é, sem dúvida, uma obra importante. Bela, sofisticada, necessária na sua função de espelho da máquina de moer gente que é a modernidade. Mas sua beleza carrega, junto, uma pergunta que não pode ser ignorada:

Estamos aqui para contemplar a engenhosidade do cárcere? Ou para descobrir como quebrá-lo?

Ao longo de quase duas horas, o espetáculo constrói uma experiência que recusa a lógica da catarse, da conciliação e do entretenimento superficial. O que se oferece ao público não é conforto, mas pensamento. Uma cena que não consola, mas convoca. Que não distrai, mas desnuda. A montagem nos oferece um mapa impecável do labirinto. Mas não oferece o martelo. Nem uma chave. Nem sequer a planta da parede mais frágil.

E se a porta da Lei continua fechada — como Kafka escreveu —, talvez não seja apenas porque ela é inacessível. Talvez seja, também, porque a encenação escolheu não perguntar como se arromba uma porta.

Epílogo: Teatro como Mausoléu ou como Trincheira?

✨ Esta análise não nega, em nenhum grau, a potência artística do espetáculo. Pelo contrário. Ela nasce exatamente do reconhecimento de sua excelência. Mas se organiza a partir de uma pergunta irrecusável para quem, como eu, entende o teatro não como lugar de contemplação do horror, mas como espaço de elaboração coletiva da transformação:

Quando estetizamos a anatomia do cárcere, não corremos o risco de transformar a própria impotência em obra de arte?

Há uma beleza que ilumina. E há uma beleza que ofusca. O teatro, talvez, precise decidir — a cada cena — de qual beleza quer ser cúmplice.

Porque, como bem sabem os que fazem teatro comprometido com os que lutam, a cena não é refúgio. A cena é trincheira.

Ficha Técnica

  • Texto: Franz Kafka
  • Adaptação, direção e trilha sonora: Cesar Ribeiro
  • Atuação: Helio Cicero, André Capuano e Pedro Conrado
  • Cenografia: J. C. Serroni
  • Figurinos: Telumi Hellen
  • Iluminação: Rodrigo Palmieri
  • Visagismo: Louise Helène
  • Fotos: João Caldas Fº
  • Designer gráfico: Fabricio Síndice
  • Social Media: Jéssica Fioramonte
  • Produção executiva: Jarbas Galhardo
  • Direção de Produção: Marisa Medeiros
  • Coordenação de projeto: Edinho Rodrigues
  • Realização: Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, ProAC e o Fomento CULTSP

Serviço

  • Temporada: De 23 de Maio a 30 de Junho de 2025
  • Horários: Sextas, sábados e segundas 20h - Domingos 19h
  • Duração: 110 minutos
  • Classificação: 12 anos
  • Ingressos: R$40 (inteira) e R$20 (meia-entrada)
  • Venda online: https://www.sympla.com.br/ (com taxa de conveniência)
  • Bilheteria física (sem taxa de conveniência): Teatro do Núcleo Experimental
  • Horário de funcionamento da bilheteria: Em dias de espetáculos, a bilheteria abre 1h antes do início da apresentação.
  • Capacidade: 65 pessoas

Galeria de Imagens

Resenha publicada originalmente em "Os Que Lutam" | © 2025 Márcia Boaro - Todos os direitos reservados

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