O outro Borges

Na estreia de 'O Outro Borges', minhas expectativas já eram elevadas, considerando o tema, dramaturgo, elenco e direção. Contudo, o espetáculo não apenas as atendeu, mas as superou. Foi uma apresentação poética e bela, marcada pela harmonia excepcional entre direção e elenco.

O título da peça brinca com um conceito profundamente presente na obra do escritor argentino Jorge Luis Borges: o duplo. O dramaturgo Samir Yazbek, ao escolher o conto 'O Aleph' como base para a peça, demonstrou uma cuidadosa pesquisa, incorporando também elementos da vida real de Borges, incluindo suas relações com a política argentina.

Um dos pontos altos da peça é a forma como o realismo fantástico é trazido para o palco de maneira atualizada. As situações do conto são habilmente mescladas com eventos da vida real de Borges, criando um intrigante jogo de espelhos. A representação da ideia do duplo, tão explorada por Borges, é excepcional. Estabelece-se um paralelo entre a vida real e o conto, este último sendo uma das essências do realismo fantástico.

O enredo gira em torno da relação entre o Escritor, interpretado por Marcello Airoldi, e a Jovem, uma personagem do Sul da Argentina. Ela é filha do Gaúcho, papel desempenhado por André Garolli, que por sua vez é primo da Governanta, interpretada por Luciana Carnieli. A Governanta simboliza tanto o proletariado quanto um aspecto mais social de Borges.

A Jovem, herdeira e seguidora de Borges, é notavelmente diferente dele em vários aspectos: jovem, mulher e proletária. Essa diferença é o cerne dos conflitos entre o Escritor e a Jovem, cuja missão é herdar e transformar o legado de 'Aleph'. Nesse ponto, o dramaturgo faz uma referência a outro conto, "O Outro", no qual Borges narra um encontro fantástico entre duas versões de si mesmo: uma jovem, que vive em 1918, e outra velha, que vive em 1969. Eles se reconhecem como o mesmo, mas também percebem as diferenças e contradições que os separam. Essa mesma dinâmica ocorre entre a Jovem e o velho Escritor.

Esses conflitos são mediados pelo Filósofo, interpretado por Dagoberto Feliz, uma personagem que personifica a presença mágica no cotidiano do escritor. Ele representa uma fonte infinita de ideias, alimentando e provocando o Escritor a ir além de seus limites.

Na encenação, Lazzaratto trabalha com maestria as interpretações realistas, precisas, porém com uma relativa distância física entre os personagens, provocando um estranhamento interessante. As luzes desempenham um papel crucial na composição da proposta do realismo fantástico, com grandes enquadramentos móveis sendo talvez o exemplo mais claro, trazendo literalmente a precisão geométrica e a mobilidade ao palco.

 'O Outro Borges' é uma peça que mergulha no universo borgiano, explorando a ideia do duplo e a dualidade das personagens. Desafia as expectativas e proporciona uma nova perspectiva sobre a obra de Borges. Recomendo a todos que apreciam o trabalho do autor e buscam uma interpretação única de sua obra.

A temporada de vai até o dia 10 de dezembro, sempre às sextas-feiras e aos sábados às 21h, e domingos às 18h.

*Haverá uma sessão extra do espetáculo no dia 20 de novembro, segunda-feira, às 18h.

Márcio Boaro


Foto: Fabrício Síndice

FICHA TÉCNICA 

Texto: Samir Yazbek

Direção e Trilha Sonora: Marcelo Lazzaratto

Assistência de Direção: Carolina Fabri

Cenografia e Figurinos: Simone Mina

Iluminação: Guilherme Bonfanti

Elenco: André Garolli, Chiara Lazzaratto, Dagoberto Feliz, Helô Cintra Castilho, Lilian Blanc, Luciana Carnieli e Marcello Airoldi

Fotografia: João Caldas Fº

Assessoria de Imprensa: Pombo Correio

Produção Executiva: Fabrício Síndice

Direção de Produção: Edinho Rodrigues

Produção Geral: Brancalyone Produções Artísticas

Realização: Sesc-SP

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